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O MEU SANGUE FERVE POR VOCÊ! ENDOTERMIA FACULTATIVA EM Salvator merianae

Texto: Débora Cristina B. M. de O. Santos


Quando separamos os animais em endotérmicos ou ectotérmicos costumamos ser objetivos: os primeiros são os que produzem o próprio calor, os outros não. E ponto! Mas será que é tudo assim, tão 8 ou 80? Vem conhecer um lagarto que mostra que esse limite é mais tênue do que se pensa.

Figura 1. Teiú (Salvator merianae). Foto: Rafael Mathielo (@rafaelmathielo).


O teiú (Salvator merianae, Fig. 1) é um lagarto de grande porte, ultrapassando 1 metro de comprimento. Ocorre em quase todos os estados brasileiros (exceto Roraima, Amapá e Acre) e também na Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai. Nos EUA, o teiú ocorre como espécie invasora. É um forrageador ativo com dieta generalista, dado que se alimenta de plantas, animais invertebrados e vertebrados. Esta espécie exibe um padrão de atividade sazonal, hibernando em tocas durante a estação fria e seca (geralmente de abril a agosto).


Como outros lagartos, o teiú é um animal ectotérmico. Ou seja, ele não produz seu próprio calor. Espera... será que é isso mesmo? Em 2016, um artigo de Tattersal e colaboradores revelou que os teiús possuem endotermia facultativa: os teiús são ectotérmicos ao longo da maior parte do ano, mas são capazes de produzir seu próprio calor durante o período reprodutivo. Mas como essa descoberta foi feita?


Ao medir a temperatura dos teiús ao longo dos meses, os pesquisadores perceberam que na maior parte do ano, durante a noite, a temperatura corporal dos teiús era semelhante a da toca. Entretanto, o mesmo não ocorria durante o período reprodutivo, quando a temperatura corporal dos teiús era mais elevada (Fig. 2). Os pesquisadores então testaram se essa temperatura era devido a uma perda mais lenta do calor, obtido do ambiente durante o dia, ou se provinha de termogênese (produção de calor). Para isso, os teiús foram colocados em um ambiente fechado, com temperatura constante e sem acesso a fontes externas de calor. Mesmo nessas circunstâncias, a temperatura corporal se manteve elevada em relação ao ambiente durante o período reprodutivo. Além disso, os pesquisadores encontraram uma grande diferença entre a temperatura da pele e a temperatura interna dos teiús, principalmente no período da manhã. Assim, foi demonstrado que a fonte de calor era interna.


Figura 2. Sazonalidade na temperatura corporal de Salvator merianae. A) Ciclo anual: após a reprodução (janeiro a março), início da hibernação (março a maio), hibernação (maio a final de agosto), reprodução (final de agosto a janeiro). B) Mudanças na temperatura corporal (preto) ao longo do ano, comparada à temperatura na toca (verde) e no ambiente (laranja). C) Diferença entre a temperatura corporal e a temperatura da toca. Fonte: Tattersal et al. (2016).


Além da produção de calor, os teiús apresentam comportamentos que minimizam a perda de calor para o ambiente. As tocas utilizadas para a reprodução funcionam como isolantes térmicos, e eles exibem comportamento gregário (vários indivíduos se recolhem a uma mesma toca). Os pesquisadores perceberam que, nas tocas em que havia pelo menos um teiú, a temperatura era mais elevada do que aquelas vazias. Visto que os ninhos são feitos pelas fêmeas em suas próprias tocas, isso pode influenciar a temperatura de incubação dos ovos. Ou seja, durante o período reprodutivo os teiús elevam sua temperatura corporal acima da temperatura ambiente por meio de termogênese, e mantêm essa temperatura por meio da redução da perda de calor, termorregulação e isolamento térmico promovido pela toca.


A origem da endotermia dos teiús ainda não é conhecida, mas existem algumas hipóteses para seu surgimento. Uma destas hipóteses – a hipótese reprodutiva – sugere que a endotermia surgiu como consequência do cuidado parental, como uma forma de controle da temperatura de incubação dos ovos. Essa hipótese também sugere que a termogênese seria resultado do aumento dos níveis de hormônios sexuais ou da tireoide durante o período reprodutivo.


Ainda resta muito a entender sobre os mecanismos fisiológicos que permitem que os teiús produzam e mantenham o calor durante o período reprodutivo. Entretanto, alguns estudos demonstram a relação entre a sazonalidade e a concentração de certos hormônios (sexuais, da tireoide e corticosterona) em teiús. Também existe uma relação positiva entre a concentração de corticosterona e hormônios da tireoide com a temperatura corporal, como prediz a hipótese reprodutiva. A descoberta da endotermia facultativa em teiús lança luz sobre a origem da endotermia, corroborando a hipótese de que a endotermia é um benefício ligado à reprodução, ajudando na manutenção da temperatura de incubação.


A endotermia tem alto custo energético e entender porque ela foi selecionada não é tarefa fácil. Manter altas taxas metabólicas requer maior ingestão de alimento, um recurso muitas vezes escasso. A endotermia em aves e mamíferos se deu, provavelmente, por convergência evolutiva (surgiu de forma independente nos dois grupos). A descoberta da endotermia em répteis pode ajudar a ciência a finalmente desvendar as origens dessa característica.



Referências


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Débora Cristina B. M. de O. Santos, mestra em Ecologia de Ecossistemas pela Universidade Vila Velha. Contato: deboracbio@gmail.com.


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