Texto: Fernanda Oliveira Pigossi
De onde surge o nosso medo de cobras? Se você, assim como eu, é apaixonado por esses répteis, pode estar negando com a cabeça nesse momento e pensando “que medo?”. A verdade é que, com exceção a alguns corajosos invictos, mesmo o mais afeiçoado a esses animais escamosos teve que lutar contra um instinto inicial de apreensão quando se aproximou e tocou uma cobra pela primeira vez.
Você pode até estar se perguntando: o que isso tem a ver com herpetologia? O pesquisador Marco Freitas (2003), demonstrou em seu estudo que o elevado número de mortes de serpentes pelo ser humano acontece por conta da falta de informação de uma parcela da população, que acredita que esses animais são maus, ardilosos e traiçoeiros. Assim, o medo não vem só de um instinto biológico, mas até mesmo de um julgamento moral desses animais, os mitos superam a realidade e as serpentes pagam o preço pelo medo e pela desinformação. Você já parou para pensar na relação entre o que a sétima arte retrata das cobras e a visão social delas?
Crescemos com filmes como “Anaconda”, “Serpentes a bordo” e “Python: A cobra assassina”, com cobras gigantescas com sede de sangue humano. Não é uma visão muito agradável, não é mesmo? E isso se torna potencialmente problemático quando paramos para pensar que os filmes têm uma abordagem discursiva sobre estereótipos e representações do real que se conectam ao processo de aprendizagem (Friedrich, 2012) .
Isso quer dizer, na prática, que mesmo os filmes que retratam coisas distantes da nossa realidade - como cobras predando seres humanos - podem ser responsáveis por “vender” falsos conceitos que vão interferir com como as pessoas interagem com certas situações e animais.
Figura 1: Serpente Eunectes murinus, popularmente conhecida como “sucuri-verde”, acredita-se ser uma das serpentes que inspirou a criação da serpente fictícia da franquia de filmes “Anaconda”. Fonte: Em sinapse.
Além do cinema, temos outras interações que também interferem na nossa forma de ver o mundo. Quem nunca ouviu ditados populares e “causos” desde criança? Pois é! Esses “causos” muitas vezes trazem informações equivocadas também. Algumas experiências culturais, junto com o consumo de alguns tipos de filmes, podem favorecer a produção de crenças e visões de mundo (Kindel, 2007).
E os ofídios lideram o ranking de seres mais rodeados de mitos: desde a reprodução bíblica da serpente do Éden, até as interpretações mais contemporâneas como nos filmes citados. Assim, o medo que as pessoas sentem desses animais é criado pelas histórias contadas, na maioria dos casos, desde a infância, e alimentada pela sétima arte. O resultado disso é claro e triste: um número elevado de mortes de serpentes, sejam elas peçonhentas ou não, quase sempre com a justificativa da “legítima defesa”, mesmo quando não apresentam de fato algum tipo de perigo ou quando a própria imprudência humana é que as coloca numa situação difícil.
Em 2024, a estudiosa Mariana Macêdo avaliou a taxa de mortalidade de espécies da ofidiofauna por moradores no município de São Mateus, no Maranhão. Entrevistando os moradores, ela relatou que 54,1% dos que avistaram serpentes optaram por matá-lás. A maior parte das pessoas que foram entrevistadas acredita que todas as cobras são venenosas, apesar de 95% dos que responderam a pesquisa nunca terem sido picados. Um número significativo de pessoas nesse estudo não sabem qual é a importância ambiental das cobras, ou até mesmo acreditam que elas não têm importância nenhuma no meio ambiente.
Deu pra ver que os ofídios não são animais muito populares na vida real, né? É por isso que a educação ambiental acessível e inclusiva é tão importante: a falta de conhecimento junto com informações falsas sobre os ofídios faz com que o relacionamento dos seres humanos com esses animais seja baseado no medo. Esse medo, como vimos, tende a desencadear reações violentas, que é exatamente o que precisamos evitar para preservar nossas espécies.
Referências
COSENDEY, B.N.; SALOMÃO, S.R. Visões sobre as serpentes: répteis ou monstros. IX ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS. Águas de Lindóia, p. 1-8, 2013.
FREITAS, M.A. Serpentes Brasileiras. Bahia. Proquigel Química, 160p, 2003.
FRIEDRICH, S.P.; SCHEID, N.M.J. O cinema como tecnologia para o estudo das representações ambientais presentes no filme Avatar. In: anais IV EREBIO e II ENEBIO da Regional 4, 2012.
KINDEL, E.A.I. A natureza no desenho animado ensinando sobre homem, mulher, raça, etnia e outras coisas mais... In: Ensaios em Estudos Culturais, Educação e Ciência: a produção cultural do corpo, da natureza, da ciência e da tecnologia instâncias e práticas contemporâneas, org. Kindel, E.A.I., 1: 223-235, 2007.
MACÊDO, M. B. Taxa de mortalidade de espécies da ofidiofauna por moradores do município de São Mateus do Maranhão: Uma Iniciativa conservacionista. 2024
****Este foi um dos ótimos textos que recebemos durante nosso processo seletivo para redator!
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