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A VERACIDADE DA MULHER-RÃ

Atualizado: 25 de jun. de 2020


Texto: Maria Eduarda Bernardino Cunha


Quais as características da personagem Mulher-Rã condizem com a realidade?

De tempos em tempos a herpetofauna serve de inspiração para personagens de filmes, séries ou novelas. Exibida no ano de 2009 pela emissora Record TV, a novela “Mutantes: Promessas de Amor” traz, entre muitos personagens, Rana vigo, a mutante Mulher-Rã. Se você não sabe do que eu estou falando, ou gostaria de rever a Mulher-Rã, fica o link para o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=vtHuxax4pt0&t=82s


Conhecemos a personagem quando ela é detida e levada para a delegacia por coaxar nua perto de uma cachoeira. Rana se explica dizendo que mora perto de um rio na floresta da Tijuca, alimenta-se de insetos (e projeta sua língua, em uma bela demonstração de como captura seus alimentos), que vive quieta em seu canto e afirma “eu não perturbo ninguém, são os outros que me perturbam”. No momento em que se sente ameaçada pela possibilidade de ser sedada e presa a Mulher-Rã salta e se fixa na parede da sala onde está; no seu nível máximo de estresse, tentando se libertar, ela expele pela boca uma secreção esbranquiçada.


Deixando de lado a parte fantasiosa dos mutantes geneticamente modificados, o que foi baseado em fatos reais de anuros para a concepção da Mulher-Rã? Quais as características dela são reais e quais são baseadas em mitos, lendas e concepções errôneas?


Sabemos que realmente muitos anfíbios vivem nas matas da Tijuca, na cidade do Rio de Janeiro. No Parque Nacional da Tijuca já foram registradas 39 espécies de anfíbios, como Aplastodiscus albofrenatus, Boana albomarginata, Boana faber, Dendropsophus elegans, Dendropsophus minutus, Ololygon perpusilla, Phasmahyla guttata e muitas outras. Então, sim, seria muito possível encontrarmos anuros coaxando próximo a corpos d’água, mas não uma fêmea, né! Os cantos nupciais de anuros são emitidos pelos machos!


E rã se gruda mesmo nas paredes? Tudo bem que a divisão dos anuros entre sapos, rãs e pererecas é muito mais didática do que propriamente uma separação filogenética de grupos, mas, nesse contexto, quem consegue se fixar em superfícies são as pererecas, que possuem os discos adesivos nas terminações dos dígitos, e não as rãs, que têm as extremidades dos dígitos lisas e são muito mais conhecidas por saltarem do que se fixarem em substratos verticais. Durante alguns momentos da cena da novela se referem à Mulher-Rã como “Dona Perereca”..... talvez esse teria sido um nome mais biologicamente apropriado.


Uma coisa que chama muito a atenção é a grande habilidade de projeção da língua apresentada pela personagem - procurem no YouTube, vale a pena! Tá, a língua da personagem é muito mais comprida que a de anuros, e não sei dizer exatamente como ela armazena uma língua daquele tamanho, mas em anuros funciona mais ou menos assim: diferentemente de nós, que temos a base da língua fixada na parte posterior da cavidade bucal, os anuros têm a língua fixada na parte anterior da boca. Quando ela é projetada para fora, ela se desenrola e a parte que estava virada para baixo acaba ficando virada para cima…. e a língua da Mulher-Rã faz o mesmo!


Desenho esquemático da projeção da língua de anuros. Adaptado de Im, Je & Lee, 2015.


Podemos ver várias pessoas na internet comentando sobre a “arma secreta” da Mulher-Rã, inclusive algumas afirmações de que anuros realmente expelem uma secreção leitosa quando ameaçados. A verdade é que essa é, possivelmente, a parte mais fantasiosa dessa história toda! A maior parte dos anuros não têm essa capacidade de expelir venenos! Conhecemos apenas uma espécie que possui essa habilidade, o sapo amazônico Rhaebo guttatus que, quando ameaçado, expele a secreção de sua glândula paratóide em jatos que podem alcançar até dois metros de distância.


Mas os anuros mais comuns, com os quais estamos mais acostumados, não possuem essa habilidade toda! Sapos do gênero Rhinella produzem uma substância de aparência similar com a exibida pela telenovela, mas esta é armazenada nas glândulas paratóides e somente liberada quando se exerce uma pressão nas glândulas, como uma mordida, por exemplo. Pererecas do gênero Trachycephalus, as pererecas-leiteiras, também são conhecidas pela produção de uma secreção leitosa, mas a substância fica na pele das pererecas, não sendo lançada pelos animais.


Anuros ainda são animais cercados, pela população não herpetóloga, de muitas lendas e mitos, frutos de más interpretações de seus aspectos fisiológicos e ecológicos. Por mais que tenham sido representados, nesta novela, com algumas características reais, podemos verificar a presença de informações não verídicas, como é o caso do veneno expelido pelos anuros, que existe somente no imaginário da população.


Referências

Amazonian toad Rhaebo guttatus is able to voluntarily squirt poison from the paratoid macroglands. Amphibia-Reptilia, 32, 546-549.

ICMBIO 2008. Plano de Manejo para o Parque Nacional da Tijuca. Instituto Chico Mendes de Biodiversidade e Conservação da Natureza, Brasília. 1079 p.

Jared, C., Antoniazzi, M. M., Verdade, V. K., Toledo, L. F. & Rodrigues, M. T. 2011. The Im, S.-Y., Je, S.-H., & Lee, J.-H. 2015. Tongue Movement and Role of Frenulum Linguae Effecting Tongue Movement during Prey Capture in Rana nigromaculata. Applied Microscopy, 45(2), 74-79.

Nishikawa, K. C. & Gans, C. 1996. Mechanisms of tongue protraction and narial closure in the marine toad Bufo marinus. The Journal of Experimental Biology, 199: 2511-2529.

Pough, J. H., Janis, C. M. & Heiser, J. B. 2008. A Vida dos Vertebrados. 4ª ed. São Paulo, Atheneu. 716 p.


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